Quarentena ou Pós-Parto?
- Mico
- 6 de abr. de 2020
- 7 min de leitura
15 dias de quarentena e eu sinto que estou a passar por todo um novo puerpério.
O mundo inteiro está em estado de emergência e tenho a impressão que a população está dividida em dois: de um lado os que estão tranquilos da vida e do outro, os que estão prestes a sair à rua lamber a maçaneta do hospital para ver se apanham COVID de uma vez por todas para finalmente descansarem.
Eu vou falar do lado que eu me encontro: o que está a enlouquecer e prestes a cortar os pulsos.
Eu sempre me considerei uma pessoa caseira. Sempre adorei ficar na minha casa, no meu espaço… lembro-me que quando vivia com os pais, era capaz de passar horas a fio no meu quarto, a ler, estudar, ver televisão, ver o meu telefone, ouvir música.
Sempre cresci como filha única e a solidão nunca me causou muita aflição. Acho-me uma óptima companhia.
Eis que um dia, um vírus qualquer decide fechar-me em casa com o meu namorado e a nossa filha de 6 meses.
Ora vamos lá.
O vírus fechou-me em casa. Com o namorado.
Esta frase seria linda se tivesse acabado por aqui, eram noites maravilhosas passadas a ver a nova season de Casa de Papel no Netflix ou a beber até não conseguir subir as escadas ou até mesmo a não fazer absolutamente coisa nenhuma.
Mas não.
O vírus fechou-me em casa. Com a minha filha de 6 meses. Esta frase também teria acabado lindamente se, de facto, o vírus tivesse me fechado em casa só com a minha filha de 6 meses. Os dias seriam passados entre sonecas de 45 minutos a 2 horas de 2 em 2 horas porque-a-janela-de-sono-dos-pequenos-deve-ser-respeitada-ouvi-sim-Dra-especialista-do-sono, papinhas divertidas, birras, actividades sensoriais, natação, alguma roupa para lavar mas pronto… era só eu e ela, juntas para toda a vida.
Mas não.
O vírus fechou-me em casa com o meu namorado e a minha filha de 6 meses.
Esta frase teria sido maravilhosa se o meu namorado tivesse sido educado na Noruega no século XXI onde ele soubesse cozinhar pratos complexos ou até mesmo qualquer sopa da vida, passar a ferro e que se ele atirar os boxers e falhar o cesto, as fadas madrinhas só existem na Disney. Isso e se a minha filha não tivesse apanhado as vacinas dos 6 meses, feito febrões de 40ºC, ter pedido quase um quilo e ter dormido quase nada durante o que eu sinto ter sido quase sempre.
Mas não.
Eis que o vírus me fechou em casa com o meu namorado, a minha filha de 6 meses e o meu trabalho.
E esqueceu-se de trancar a minha empregada (ah… São, como eu te amo) e a babá da minha filha (ah… como eu te amo Elga) connosco.
Foi aí que percebi que a real missão do COVID-19 era enlouquecer o povo.
Eureka!
Sinto que voltei para o puerpério.
Onde já não há horas, a rotina é uma coisa inexistente, tudo é feito em esforço e nada fica bem feito.
O puerpério, para quem não sabe são aqueles 30, 60, 9000 dias após o parto em que nada faz sentido.
Não há horas para comer, não há horas para dormir, não há horas para pôr as máquinas a lavar, não há horas para tomar banho e, se for preciso, ficamos 2 dias sem lavar os dentes, 5 dias a comer a mesma sopa enquanto nos caem as lágrimas cara abaixo porque nos apetece um cheeseburger mas não se pode comer lacticínios durante a amamentação e, ocasionalmente, 15 dias sem lavar o cabelo.
Uma coisa que acontece quinzenalmente pode ser considerada ocasional, ou não?
O puerpério é aquela fase em que uma pessoa aquece o prato 4 vezes no micro-ondas e continua a comer sozinha à mesa e gelado, bebe café às 12:38 depois de ter acordado às 6:40 mas ter se esquecido 6 vezes de carregar no botão da Nespresso, tenta fazer a cama às 21:30 só-mesmo-para-dar-um-jeito-antes-de-me-deitar, passa o dia de fato de treino e coque no topo da cabeça.
O puerpério é só e apenas a única coisa no mundo pela qual ninguém deveria passar.
Metade do mundo está nele e eu, estou a passar pela segunda vez este ano.
Querida metade da população que não está no puerpério, que consegue treinar 2 vezes por dia, fazer refeições saudáveis, ter a casa impecável, ler livros, meditar 2 horas e fazer sei lá que outra actividade, desejo que apanhem todos um COVID levezinho que vos deixe muito mal mas não vos mate porque eu não desejo a morte a ninguém, só para terem oportunidade de pensar um bocado mais na vida.
Eu, almoço enquanto faço reuniões, tiro roupa do fio enquanto converso naturalmente sobre o plano de comunicação emergencial da empresa onde trabalho, adormeço a minha filha na reunião de equipa e mando os meus comentários por mensagem porque não posso falar porque-a-janela-de-sono-dos-pequenos-deve-ser-respeitada-ouvi-sim-Dra-especialista-do-sono, ponho máquinas para lavar enquanto assisto a webinars, tenho que resgatar emails porque a minha filha mandou 6 vezes um email escrito “kaosjhdfidsahjndskkkkkkkkkkkkkkkkkksadjASDKal” a uma pessoa que eu não sei quem é, visto-me enquanto releio o relatório do departamento e já sei como virar o ecrã do computador com as teclas de tanto que a Baby M. já o virou ao brincar com o meu computador.
Isto já sem contar a quantidade de vezes que dei de mamar, teto ao léu, durante as reuniões.
Contei-vos que no primeiro dia de homeoffice, ela entornou o meu cantil de água para cima do meu computador e eu fiquei sem as teclas “a” e “z”?
Desafio-vos a contar, oh querida metade do mundo que faz meditações de 3 horas, o número de “as” que há neste texto e a mandar-me um DM pelo Insta.
A vida está insana.
Ninguém estava pronto para isto.
Ninguém nunca pode sair disto normal.
Ninguém no mundo, absolutamente ninguém consegue e pode ser pai a tempo inteiro, professor a tempo inteiro, dona de casa a tempo inteiro, profissional a tempo inteiro, empregada a tempo inteiro.
Estamos a viver uma insanidade.
O mundo inteiro está a viver um pós-parto.
No momento em que escrevo isto, tenho uma máquina de lençóis por dobrar em cima da minha mesa de jantar, a Sophie da minha filha, assim como pelo mais 3 brinquedos, o meu tapete da sala de estar está a secar lá fora porque um dos meus gatos vomitou em cima e ontem o meu cão esteve a esfregar o focinho nele, tenho um resguardo em cima do meu sofá porque o meu namorado hoje de manhã achou por bem por uma fralda de piscina a minha filha e ela fez um maravilhoso xixi que passou a fralda, o pijama e o sofá, jantei depois das 23:00 e vou comer uma torrada com Nutella passado da meia noite. Eu não comprava Nutella há mais de 7 anos.
Também quero comprar uma pá para enterrar o meu namorado no quintal.
E o cão.
E os gatos.
E os dois cágados também.
Se alguém fizer entrega, por favor contactar.
A vida está completamente insana.
Para não perder completamente a cabeça, fiz duas coisas.
Uma coisa é a lista das tarefas de casa e a outra é uma lista de auto-cuidados.
A lista das tarefas de casa é para organizar os casais e as famílias.

Há todo um mundo de tarefas invisíveis que as nossas queridas empregadas faziam, que as mulheres sabem pois normalmente são elas que gerem as casas e os homens não sabem que existem.
Para facilitar, reuni numa lista algumas tarefas que são importantes fazer mas nem todas precisam fazer todos os dias.
No princípio da quarentena tinha a sensação de fazer todas as reuniões a fazer tarefas de casa. Varrer, limpar chão, fazer o almoço, por roupa para lavar, estender roupa. Os meus dias eram um sanduíche de reuniões com tarefas e sempre, sempre, os meus dias acabavam frustrados.
Tinha a sensação que a minha casa estava sempre suja, sempre alguma coisa desmazelada. Eu limpava a sala mas o quarto estava uma desgraça, eu arrumava o andar de cima e a sala estava cheia de pó, eu arrumava o escritório. Fazia máquinas de roupa e a cozinha estava de pernas para o ar.
E minha nossa… como me deprime um chão manchado!
Instauramos cá em casa 2 dias de limpeza por semana: às quartas e aos sábados.
As limpezas de quarta-feira são levezinhas, limpar o chão, passar a esfregona, fazer uma máquina de roupa.
A limpeza de sábado é um bocado mais pesada: limpar o pó, limpar tudo bem, passar o aspirador, lavar as casas de banho, etc…
Há limpezas que eu preciso, para minha sanidade mental, que aconteçam diariamente: a cozinha, a cama, ter um chão minimamente limpo, etc…
Outro problema que acontecia cá em casa, é que eu gostava de limpar ao acordar, às 7:30.
O namorado gosta de limpar depois das 23. Ora entre as 7:30 e as 23, muita vida e muita sujidade acontece.
Concordamos em fazer as limpezas os dois ao mesmo tempo.
Na quarta-feira é à hora do almoço. Aos sábados, é ao acordar. Em duas horas resolvemos o problema no sábado.
A lista de auto-cuidados, serve apenas para me lembrar que há coisas que já são auto-cuidados e que não devemos levar tudo tão ao extremo e ao exagero.
Às vezes, o auto-cuidado vai ser só fazer o básico.

Não é preciso tomar banho e vestir fato e calçar saltos altos para ser considerado autocuidado.
Às vezes, basta um banho, 10 minutos de meditação ou uma caminhada.
E no outro dia, vai ser tudo isso e ainda vamos conseguir fazer todas as reuniões do escritório e fazer 2 máquinas de roupa e também fazer todas as refeições saudáveis. Foi um dia bom.
Um outro dia, só vamos conseguir lavar os dentes, comer um prato aquecido da véspera, participar na reunião e não ouvir nada porque a miúda esteve aos berros e virou outra vez a tela do computador de pernas para o ar.
Foi um dia menos bom, mas um dia bom ainda assim.
Precisamos, todos, aprender a relativizar.
Aprender a ser mais tolerantes.
Com os outros também mas principalmente connosco.
Precisamos entender que não precisamos ser super nada, muito menos nesta altura.
Não faz mal usar roupa amarrotada. Não faz mal o pó.
Não faz mal comer massa 3 vezes na semana.
Não faz mal não comer saudável.
Não faz mal as unhas estarem à toa.
Não faz mal o cabelo estar à toa.
Não faz mal almoçar sandes.
Não faz mal a vida estar à toa.
A vida é sempre à toa.
A rotina é que nos dá a sensação de controle.
Assim como no pós-parto, tolerem-se.
Sejamos simpáticos connosco.
Be kind.
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